Promessa não Cumprida

 

 

 

Promessa Não Cumprida

 

 

 

 

Levantou-se de madrugada. Uma longa caminhada esperava-o. Seria caminhar, caminhar, caminhar sem fim.

O local a atingir estava tão longe que, para um pobre caminhante, se encontrava no infinito. O sol ainda não dava sinal de ir aparecer. Ainda se poderia considerar ser mais noite do que dia. A escuridão continuava a ditar as suas leis. Não havia tempo a perder. O caminho estava traçado havia muito tempo. A sua mente tinha a certeza das dificuldades que o frágil corpo ia enfrentar durante a caminhada. Uma certeza era presente no seu espírito desde que se prontificou a cumprir a promessa: chegar ao destino. Nada mais interessava. Os compromissos com Deus e Seus Santos, não eram para desprezar. Estava perfeitamente consciente da fraqueza e da pouca resistência do seu corpo. A alma, essa, não conhecia, nem fraqueza nem oposição, fosse qual fosse o desafio. Era determinada. Queria e executava. Sonhava e logo as coisas apareciam. Os pensamentos afloravam desordenadamente e, num ápice, estavam em ordem.

Depois de se preparar, com aquilo que julgava ser o mínimo necessário para iniciar o seu empreendimento, deu uma vista de olhos pelo interior da sua humilde habitação, como se fosse uma despedida, retirando a seguir para o exterior. As estrelas ainda se encontravam com o seu brilho nocturno. O homem examinou o céu como se precisasse de se orientar naquela imensidão azul. Abanou o corpo para que as mochilas, que transportava às costas, se adaptassem ao formato do seu porte esquelético, agarrou uma espécie de bengala de um pau de sobreiro, iniciando a marcha.

Depois de ter dado os primeiros passos, pôs-se a pensar e a responder para si mesmo:

“Será que vou conseguir? Sim, tenho de conseguir. Vou ser capaz. Sei que vai ser difícil, mas a promessa será cumprida, nem que seja a última coisa a fazer nesta triste vida”.

 

Enquanto ia analisando os problemas à medida que caminhava, as casas do lugar onde morava, iam ficando para trás. Os passos eram largos e cadenciados. Era o começo e o sol ainda se não mostrava. No horizonte já se notava que faltaria pouco tempo para o raiar. O brilho das estrelas estava a desaparecer progressivamente. O sacrifício da caminhada estava presente. O calor do mês de Agosto ia começar a dar sinal, brevemente. O caminhante sabia disso e estava preparado.

Ao fim das duas primeiras horas de viagem, parou. Estava na altura de beber um pouco de água. De uma fonte, à beira o caminho, jorrava o precioso líquido cristalino, como aquela manhã. De uma fenda da rocha granítica, fresca e apetecida, a água, fazia parar qualquer um para a beber diretamente. Era refrescante para o corpo e para o espírito de todos os que ali passavam a caminho dos seus compromissos; religiosos ou comerciais.

Seguidamente ao pequeno intervalo, recolocou às costas os apetrechos e seguiu mais satisfeito. Estava na hora de continuar a grande caminhada. O calor estava a começar a apertar, mas isto era apenas o princípio da caminhada, do dia, e da incidência dos raios solares sobre todas as coisas. Não tinha companhia. Nunca se preocupou com esse pormenor. Por outro lado, não se sentiria perfeitamente à vontade se tivesse de partilhar os seus problemas com alguém. Durante a sua vida, fora sempre muito independente. Só partilhava o indispensável com terceiros. Dentro das quatros paredes da sua habitação sentia-se feliz, mesmo tendo em conta a sua pobreza. Vivia só. Desde que perdera aquela que sempre o ajudara, a suportar as agruras da vida, tinha-se isolado ainda mais. Apenas convivia, aos domingos, quando se deslocava à Igreja, para cumprir os preceitos, com algumas pessoas mais próximas, remetendo-se rapidamente para o seu esconderijo.

Jurava a si próprio, de momento a momento, que ia cumprir a promessa que fizera ao santo, para que lhe devolvesse o único filho que se encontrava na guerra. A pátria tinha-o chamado, sem atender à falta que ele fazia em casa. Mesmo contra a vontade, tivera de seguir. Tinha deixado a mãe doente, quase há dois anos. Não resistira à separação do filho. Ficara muito debilitada, física e moralmente. Na sexta noite, após a partida para a guerra, silenciosamente, o coração, derretido pelo cansaço e pelo desgosto, parou. Agora, àquele pobre homem, só restava um único membro, mas para seu desgosto, a guerra tinha-o bem longe de si.

 

O calor da tarde apertava e nem a sombra de algumas árvores eram capazes de refrescar o débil corpo carregado. De vez em quando, fazia um exame de consciência e vinham-lhe à memória muitas lembranças do passado. Uma, das que estava mais vezes presente, era a do sonho que o tinha levado a fazer aquela promessa. Uma noite acordara sobressaltado. Vira a imagem do seu filho cair. O inimigo tinha-o atingido. Não conseguira dormir mais. De manhã, fora procurar notícias.

 

Ao fim de uma semana, recebeu carta do seu descendente, datada do dia posterior ao do pesadelo. Ficara radiante. Ele estava feliz com a missão que lhe tinham atribuído, mas apesar disso fizera logo a promessa:

“Para que o meu filho volte são e salvo, irei peregrinar até ao local de veneração ao Santo Protector dos Combatentes”.

 

Todas as noites, o sonho voltava. Ao fim de uns meses, pensou:

“Tenho que ir cumprir o que prometi antes que seja tarde. O meu corpo já está gasto pelos anos de trabalho duro e fracos recursos alimentares. A vida desta gente, como eu, é de constante sofrimento físico, moral e de escassez de bens de primeira necessidade. Assim está determinado e nada fará mudar a nossa sorte”.

 

À medida que os dias e as noites se sucediam, o devoto caminhante, ia encurtando a distância a percorrer e aumentando-a do local de onde tinha deixado os seus parcos haveres. A saudade, das pobres coisas que tinha deixado para trás, ia aumentando na medida em que aumentava a distância percorrida. Era certo que, o que tinha abandonado por uns tempos era pobre e miserável, mas, mesmo assim, eram as suas coisas. A qualquer hora, do dia ou da noite, poderia servir-se delas como bem entendesse, mas com aquela separação nem valia a pena pensar nisso. A saudade estava a ser forte. Nunca se tinha ausentado para além do lugar mais próximo. Nunca na sua vida, que já não era curta, chegara a tão longa distância. Neste momento de cumprimento de uma vontade, ainda não tinha desanimado apesar das dificuldades porque estava a passar. A cada metro avançado, as pernas davam sinais de cansaço. Era evidente que não tinha vinte anos. Mesmo tendo trabalhado durante uma vida inteira em trabalhos pesados, ao sol, ao frio, à chuva e ao vento, nos campos e nos montes, a viagem não era a mesma coisa. Quanto mais caminhava, mais parecia que aumentava a distância que faltava. Não conhecia o caminho. Avançava segundo as suas certezas. Por vezes, quando se cruzava com alguém, por aqueles caminhos perdidos da civilização, confirmava, perguntando:

“Para o Santo Protector dos Combatentes, é este o caminho?”

“É. Mas ainda está muito longe, homem de Deus! Como vai conseguir chegar sozinho?” – perguntavam-lhe, admirados.

“Com a ajuda de Deus!” – respondia, enquanto prosseguia.

Outras vezes, como resposta à mesma pergunta, ouvia:

“Não, não é este! O senhor deve ter entrado no caminho errado ao fundo do monte. Perdeu quase um dia de viagem. O melhor é voltar a descer aquilo que subiu e depois voltar para o lado onde o sol se põe, para a outra serra”.

“Obrigado, meu senhor. Não conheço o caminho, não sei ler, mas hei-de cumprir a promessa!”

 

Desanimado por momentos, seguia os conselhos. A vontade de cumprir era superior e rapidamente se conformava com o destino.

 

A distância foi ficando cada vez mais curta. Lentamente o caminho fora calcorreado acompanhado pelo sofrimento de um corpo velho e cansado. Os poucos alimentos que carregara, antes de partir, tinham-se esgotado. A água nunca lhe tinha faltado. A natureza tinha-se encarregado de lha fornecer periodicamente e em abundância. Assim, sempre que encontrava uma fonte, bebia e enchia o cantil. Repetiu este ato vezes sem conta. Dinheiro, não possuía muito, mas sempre chegava para o necessário. Quando passava por alguma povoação, abastecia-se do mínimo indispensável para não sobrecarregar aquele corpo a dar sinais de fraqueza. Para dormir, estendia uma esteira velha e cobria-se com um velho cobertor. Descalçava as botas para servirem de travesseiro, depois de as encher com ervas, e pouco mais fazia porque, após se estender, de tão fraco e cansado que estava, adormecia imediatamente. Uma noite, acordara com a água da chuva a bater-lhe na cara.

“Já deve estar a chover há muito tempo!” – pensou ao sentir-se encharcado.

Tentou acomodar-se o melhor possível. Não conseguia ficar ali naquela situação por mais tempo. Ao fim de alguns minutos, pegou na candeia que tinha a chama mortiça, aumentou-a, carregou as coisas e pôs-se em marcha, dizendo em voz baixa por si mesmo:

“Molhado por molhado, vou andando. Falta pouco para atingir a meta. Mais um dia ou dois no mesmo ritmo e a missão será cumprida. Prometi e cumprirei. Deus me ajude se for essa a Sua vontade”.

 

O caminhante solitário pensava regressar a casa brevemente, mais satisfeito que quando tinha partido. As forças estavam a faltar-lhe, mas não queria desanimar pelo pouco que faltava.

 

 

Uns dias depois da partida, às onze da manhã, como habitualmente, o carteiro da distribuição de correspondência do lugar, bateu à porta do caminhante ausente. Ninguém respondeu. Insistiu. A vizinha mais próxima, chamou:

“Senhor Mendes!”

“Aí, não está ninguém! Foi cumprir uma promessa ao Santo Protector dos Combatentes. Foi a pé e só”.

“O quê? Foi a pé? Sozinho? A senhora sabe a que distância fica daqui?”

“Não, não sei. Dizem que é lá muito longe, onde o sol se esconde...”

“Não será assim tão longe, mas velho e fraco como é, o mais certo é morrer pelo caminho” – respondia o carteiro, como a demonstrar ser conhecedor do assunto.

“Cruzes, credo! Para longe vá o agouro. Se quiser, tomo conta da carta, Senhor Mendes”.

“Não é uma carta. É um telegrama”.

“Telegrama? Então, é caso sério!”

“Isso não sei. Apenas sei que vem da tropa e de lá não costuma ser grande coisa”.

“Deve ser por causa do filho”.

“Sim deve ser. Também já me lembrei disso”.

“E se abríssemos o telegrama?” – indagou a mulher.

“Não! Não se pode abrir a correspondência dos outros. É crime!”

“Bem, se o Senhor Mendes mo deixar ficar, eu mesmo faço isso. Pode ser preciso ir avisar o homem de alguma coisa importante. Assim o senhor já não é um criminoso”.

“Vou deixar-lho, mas não se falou em nada disto. Tenho que manter o meu emprego”.

“Fique descansado!”

 

Confiando o telegrama à mulher, montou na bicicleta prosseguindo a sua missão de distribuidor de boas e más notícias.

 

Entrando para a sua habitação, a detentora da mensagem, rasgou imediatamente o selo protector do texto. Queria ser a primeira a saber o que estava escrito. Haveria de compreender certamente. Pouco tinha aprendido na escola, mas talvez conseguisse.

Abriu, desdobrou e sorriu:

“Ah! Estas letras são boas de ler” – comentou iniciando vagarosamente a leitura: – “O soldado António Fonseca, morreu ontem em combate”.

 

Não quis continuar. Começou a tremer.

“E agora que faço? O homem fora para cumprir uma promessa para que o filho voltasse são e salvo. Vou avisar o meu homem ao campo. Temos de ir procurá-lo”.

 

Cerca de meia hora depois estavam os dois de regresso a casa. Mostravam-se preocupados. Não tinham a noção exata do que haviam de fazer.

“Vamos falar com o senhor abade?” – inquiriu a mulher – “Naturalmente, saberá dar solução a este caso”.

 

No dia seguinte partiram, a conselho do pároco, para a cidade mais próxima de onde tomariam uma camioneta com destino ao local da veneração. Levavam uma carta do abade para ser entregue ao clérigo local para os ajudar. Era necessário percorrer cerca de seiscentos quilómetros para atingir o destino.

Ao fim do segundo dia de viagem, à noite, chegaram em frente da residência do religioso indicado na carta que transportavam. Entregaram-na. Depois de a ter lido, respondeu:

“Agora já é tarde. Logo pela manhã, anunciaremos através da aparelhagem sonora e pedimos para o senhor se descolar aqui”.

 

Às oito horas, fizeram a primeira chamada. Até às nove ninguém apareceu.

As chamadas repetiram-se de meia em meia hora. O dia passou, mas o caminhante solitário não apareceu.

“Ainda não chegou ao local” – respondeu o senhor padre à pergunta ansiosa da vizinha do peregrino.

 

Passaram-se três dias e a situação mantinha-se sem alteração.

O casal continuava na albergaria da confraria. Estavam preocupados. Poderia ter acontecido algum mal ao homem. Era velho, fraco, a viajar só e sem conhecer nada por ali. Poder-se-ia ter perdido e ainda estar longe.

Ao quarto dia, depois de terem chegado ao local de veneração, o pároco chamou-os. Quando entraram, reparam que o seu olhar estava centrado na página de um jornal diário e o semblante estava carregado.

“Senhor abade!” – disse a Senhora, sempre mais dianteira que o marido – “Há novidades?”

“Receio que sim”.

 

Seguidamente, dobrou a página do periódico a meio e deu-a para as mãos da senhora, interrogando-a com uma pergunta:

“Conhece este homem?”

“Conheço muito bem. É o nosso vizinho. Que lhe aconteceu?” – perguntou muito admirada por não se ter apercebido de nada.

O marido, analfabeto, nada dizia. Limitava-se a ouvir a conversa dos dois. Depois o padre esclareceu:

“O homem morreu no monte, a uns dez quilómetros daqui. Foi encontrado ontem de manhã por uns peregrinos que vinham para cá. Deram o alerta para as autoridades que não encontraram nenhuma identificação. Apenas algum dinheiro no bolso. Deve ter morrido de ataque cardíaco com o frio da noite. A sua morte deverá ter ocorrido há três dias, segundo o que diz no jornal”.

Triste sorte a dele! Nem soube que o filho, por quem estava a cumprir a promessa morreu pouco antes de ele chegar ao local de veneração do santo que o não protegeu. Por isso, a promessa não necessitava ser concluída. Era o destino da natureza a determinar o seu capricho.