O Amor pela Natureza
Sob a linha do horizonte, uma barra de um vermelho vivo desconcertante, formando a base de um triângulo em que eu representava o vértice do encontro dos lados que delimitavam, a norte e a sul, a extensão da faixa luminosa. Era indicadora de que tínhamos estado na presença de um dia de verão e anunciava a chegada do dia seguinte, em iguais condições climatéricas.
Estava de férias. Ao ver semelhante espectáculo, qual pintura medieval por mais representativa da natureza se lhe podia comparar? Nenhuma! Absolutamente nenhuma. Diga-se, o homem, o pintor excepcional, o copiador dos elementos da natureza, consegue, muitas vezes, ultrapassar aquilo que a mente comum não consegue realizar. Aqui não havia comparação possível. A natureza tinha o dom natural de si mesma. Os retoques finais ainda não estavam dados e já nada se lhe podia igualar.
Um pintor que se encontrava na varanda do mesmo hotel, munido dos apetrechos necessários à execução de uma boa obra, partindo do mundo fantástico e verdadeiro simultaneamente, estava confuso. Preparava o pincel com tintas com cores que iria fixar na tela e, fazendo mais uma visada pela linha do horizonte, comentava em voz alta:
– É impossível! – ouvia-o em perfeitas condições, porque se expressava claramente – A natureza não me dá tempo de fixar a beleza patente. Muda-se constantemente. – continuava – É uma vingança? Queria tanto representar aquilo que vi, mas nada posso fazer. Perco muito tempo na observação. Nunca vi nada tão maravilhoso. Os anos nestas andanças já não são poucos. Já transmiti à tela, vezes sem conta, muitos dos seus espectáculos coloridos. Este não consigo. É por demais belo. Assim, prefiro fixá-lo na minha mente e guardá-lo religiosamente no meu centro, no arquivo a que só eu tenho acesso. Não o deixarei exposto a olhares indiscretos ou maliciosos. Aqueles que, não sendo capazes de ter um mínimo de sensibilidade, jamais terão ensejo de criticarem, mesmo que desfavoravelmente, o meu trabalho. Nunca lhes darei essa hipótese. Se passasse para a tela toda a beleza natural que encerrei dentro de mim, cometeria um crime de lesa-majestade. Diriam que tinha inventado. Daria a outros olhos aquilo que de mais sagrado encontrei: a beleza natural. A força do maravilhoso em todo o seu resplendor. A obra de Deus no seu potencial máximo. A beleza para além do limite do imaginário humano e, talvez, quem sabe, o limite da capacidade do Criador. Creio mesmo que, nestes milhões de anos de existência do planeta, alguma vez tenha acontecido tão incomensurável espectáculo. Por outro lado, jamais seria capaz de reproduzir na tela aquilo que o meu espírito elegeu e ficou preso sem correntes e sem grades.
– Por vezes o meu consciente chamava-me à atenção para que analisasse o caso. Se a minha vida era aquela: reproduzir belezas naturais, servindo-me de uns tantos produtos coloridos e da minha sensibilidade pessoal, que ninguém me ensinara, bem que tinha razão em fazê-lo. Sempre concordei com a sua chamada de atenção, mas definitivamente, recusei. Só um louco desprezaria tal beleza, não a reproduzindo. Mesmo assim, se o fizesse, e por mais sensibilidade que transmitisse, a chama da minha mente alterar-se-ia e a tristeza, pela sua adulteração, seria o carregar de um pesado fardo, eternamente.
Durante muitos minutos, observei o homem na varanda, que tinha o olhar fixado no horizonte, enquanto a faixa extraordinariamente bela se dissolvia com o aproximar do escurecer. Tão depressa a natureza mostrou outra faceta, o homem pousou o pincel muito lentamente junto de muitos outros. Depois tirou de um dos bolsos do casaco de trabalho, um lenço de seda branca e limpou as lágrimas dos olhos: estava a chorar.
Entristecido com a cena ali a escassos metros, indaguei:
– Sente-se bem, Meu Senhor?
– Oh! Sim, obrigado... Foi um aparte.
– Um aparte? – inquiri um pouco confuso.
– É apenas uma expressão, para dizer que não fui capaz de fazer aquilo para que vim.
– Queria registar o pôr-do-sol? É isso? – perguntei, como se fosse um especialista naquela arte.
– Sim, queria, mas a beleza foi de tal ordem que me cegou o espírito. Mas consegui guardá-la na minha alma e de lá não voltará a sair. Ah! Isso é que não. Morrerá comigo!...
Fiquei um pouco desorientado. Tinha estado, clandestinamente, a ouvir as lamentações do pintor, que afinal nada pintou naquele momento. Fora apenas um livro aberto durante a observação.
– Felicidades!... – disse em tom de despedida.
Um pouco atrapalhado, rumei para o interior do quarto. Não sou pintor, nem crítico de coisas desse género. A arte, nesse campo, é superior às minhas capacidades e apenas, sem saber por quê, limito-me a gostar ou não.
Depois, na divisão sem mais interferência, deduzi: o homem é um invejoso. Viu a maior beleza que a natureza produziu, tal como vi, e guardou-a só para ele. Mais adiante o pensamento voltou ao mesmo. Mas se também vi como ele, neste caso, também a guardei para mim. Mas será que guardei mesmo? Não será a diferença de sensibilidade a minha dúvida? Mas, será que vimos os dois a mesma coisa?
Para não alimentar a mente com mais pormenores e esclarecimentos sobre as dúvidas que me ficaram a pairar, desci para jantar. Afinal estou de férias. Não quero sacrifícios e o silêncio, para o corpo e para a alma, é indispensável. Nada de teimosias.
Seguidamente ao repasto, dirigi-me para a rua. Um sossego extravagante pairava no ar. Era assombroso. Momentos antes, no interior da sala, de uma meia dúzia de mesas ocupadas, saíam os ruídos do tilintar dos talhares de prata e aço inoxidável, em resultado do descuido dos hóspedes, que sem se preocuparem uns com os outros, batiam com força nos pratos de fina porcelana, como se estivessem a rapar os restos do cabrito assado que fora servido. Por isso, e em adoração ao silêncio que não se fazia sentir, apressadamente deglutira os alimentos. Ficara impaciente. Afinal, viera para descansar e parecia não ter sorte com os companheiros do hotel.
Ali na rua, a recompensação não se fizera rogada. Para ajudar a manter aquele nível de candura desejada, a luminosidade era fraca. Apenas ali e além, um ponto de luz, conseguida pela inteligência do homem e da força da água retida numa barragem, a poucos quilómetros do local, vinham interromper a escuridão que pairava à volta do cume das serras que circundavam aquela estância turística.
Indiferente ao desconhecido, fui avançando, cautelosamente, por entre caminhos e arvoredos. De vez em quando parava, interrogando-me:
– Terei chegado ao Paraíso? Ou já estou para além dele?
Achei tão impossível a existência de um espaço onde o silêncio tinha esse nome.
Mais à frente, um sobressalto.
Parei de repente. Estremeci. O peito sentia-se movimentar em resultado da aceleração cardíaca. Os batimentos pelo movimento sistólico e diastólico ouviam-se através do peito. O medo começou a instalar-se. Pareceu-me ver fantasmas em rapidíssimos movimentos. Tão rápidos que nem dava para analisar e compreender o que se passava de real.
Como tinha aprendido, inspirei lenta e profundamente, alargando o abdómen. De seguida, demoradamente, expeli o ar, carregado de anidrido carbónico e o medo instalado, para a atmosfera. Recuperei de imediato.
Após análise no arquivo dos conhecimentos anteriores, a informação foi-me passada: o piar que ecoou por todo o espaço à minha volta, tinha sido emitido por um mocho que se encontrava no seu posto de observação nocturna, como lhe tinha sido ordenado pela natureza. Então, compreendi: os meus passos alteraram o silêncio. O mocho não gostou e quis fazer-me ver que era um intruso no seu meio. Retrocedi. Para lhe fazer a vontade ou por medo? – Interroguei-me – Não sei! – Foi a resposta.
Esfriava. Serão já horas de recolher? Seguidamente consultei o relógio de bolso de ponteiros luminosos cujas posições me indicaram faltar dez minutos para as vinte e três horas. Era tempo de regressar.
***
O telefone tocou:
– São oito horas! – ouvi a voz da telefonista do hotel.
– Obrigado. Já me vou levantar.
Depois de pousar o auscultador, fixei o olhar nas molduras de gesso existentes no tecto. Nunca me tinha preocupado com esse pormenor. Isto é um trabalho de artista, deduzi. Já não se faz nada parecido. Custaria uma fortuna.
Fui-me levantando vagarosamente como era hábito, e os pensamentos entraram em movimento: dormira toda a noite? Sem interrupção? Nunca tinha sido possível. Na cidade isso é impensável. A interrogação continuava:
– Dormi oito horas seguidas? – Estava admirado. Senti-me flutuar – Foi do silêncio ou do medo provocado pelo piar do mocho? Inquiri-me como se necessitasse de uma confirmação, ou das duas coisas? Logo vou repetir o passeio nocturno. Ah! Isso irei.
Depois da vivência de um dia completo de actividade diferente daquela que é comum a um dia de trabalho, acabei por ir jantar à mesma hora da véspera. Tinha tido a preocupação de observar o pôr-do-sol outra vez. Quis repetir o acontecimento maravilhoso que os olhos me transmitiram no entardecer do dia anterior. Queria ter a certeza se a grandeza daquelas imagens nublosas e, vivamente coloridas, como fogo ardente e salpicado por diversos pontos de variados tons, se iria repetir.
Perscrutei no horizonte, à mesma hora e fiquei um ponto confuso. O dia tinha sido de intenso calor. O Sol tinha brilhado incessantemente. A sombra de frondosas árvores tinha contribuído para que me abrigasse dos poderosos raios solares. As quedas de água nas cascatas ou por entre pedras e pedregulhos enormes, que constituíam a base do leito dos pequenos rios e ribeiros que serpenteavam pela montanha, tinham sido benéficas para o espírito e para o corpo. No primeiro caso, o espírito divagava, sem canseiras, ao tentar compreender os movimentos dos elementos da natureza. No segundo caso, o corpo biológico não fora agredido de forma violenta pelas temperaturas elevadas com que o dia nos presenteara.
Neste fim de dia, o horizonte não se mostrou avisador, segundo os conhecimentos colhidos, de um próximo dia de verão, pelo contrário, era triste devido ao tom de cinzento carregado. Quase não se distinguia a linha do limite e o da faixa nebulosa. O próximo dia, segundo a interpretação do povo, iria ser de inverno.
Da mesma varanda do quarto tive o cuidado de bisbilhotar para o vizinho: o pintor.
Era verdade, ele lá continuava como no dia anterior. Desta vez entregue ao árduo trabalho de olhar para o horizonte lá longe. Seguidamente, passava o pincel sobre diversos tons de tinta na paleta que se encontrava em cima de uma pequena mesa ao seu lado e pincelava aqui e ali, na tela montada no cavalete. Depois as cenas repetiam-se como se fosse um robot programado para a execução daquele trabalho.
Não lhe quis interromper o trabalho. Fiquei a observá-lo. Uns instantes passaram e o homem virando a cabeça na minha direcção, pergunta:
– Então, está a gostar do pôr-do-sol de hoje?
– Não! Nem por isso! – respondi em tom alto, como se ele fosse surdo.
Deu um toque na boina preta já desbotada pelos anos que deveria ter, com o cabo do pincel, e, voltando a dirigir-me a palavra, comentou:
– Eu também não estou a gostar.
– Mas, nesse caso porque está a pintá-lo? – Perguntei um pouco admirado.
– Não gosto, mas há quem goste. Se fosse como a beleza de ontem, também não a pintava para ninguém. Só a queria para mim. Para guardar no interior da minha alma. Para poder observá-la a qualquer momento que tenha vontade, seja dia ou noite, acordado ou a dormir. Enfim... Sem interferências de outros, compreendeu?
Disse tudo isto enquanto repetia as cenas do movimento do pincel, incansavelmente.
– Sim, compreendi! Ou melhor, penso que compreendi. Aquele espectáculo de ontem não se pode transmitir a terceiros. Temos de ser nós a vivê-lo. Certo?
– O Senhor, também é pintor ou crítico? – perguntou de repente.
– Não! Nem uma coisa nem outra. Essas coisas em mim não resultam, mas apreciei tanto o pôr-do-sol de ontem que tive o cuidado de voltar à mesma hora para me certificar se seria igual. Vou deixá-lo em paz no seu trabalho. Provavelmente, vamo-nos encontrar ao jantar...
– Adeus. Até mais logo! – respondeu-me, vagarosamente, ao mesmo tempo em que dava mais uma pincelada na tela.
Afastei-me silenciosamente como se fosse um intruso. Ficara preocupado por ter podido desviá-lo do seu sentido de análise. Não queria ser culpado de, mesmo involuntariamente, contribuir para um desvio daquilo que ele estava a transportar da natureza para uma tela de lona.
Ia já a ausentar-me da sala de jantar, quando o vizinho entrou um pouco apressado. Estava atrasado. Os dois empregados de serviço na sala, entreolharam-se assim que o avistaram. Teriam comentado sem palavras: outra vez a chegar tarde!
Antes de passar para o exterior da divisão, ainda consegui ouvir:
– Desculpai mais uma vez. Estive a acabar um trabalho e atrasei-me novamente. Vou jantar rapidamente para não vos prejudicar no tempo de saída.
– Esteja à vontade. Por nós, jante descansado.
– Obrigado, rapazes!
Conversei uns vinte minutos com o recepcionista que estava sempre pronto a dois dedos de conversa. Colhi informações junto da sua longa experiência de lenhador durante largos anos em trabalhos na montanha e encaminhei-me para a rua.
A escuridão era plena. O ar estava um pouco mais fresco que na última noite e também um pouco mais húmido. Notava-se uma auréola em redor dos fracos pontos da luz pública na rua principal. Será a confirmação da previsão do estado do tempo para o dia seguinte? – interroguei-me.
Desloquei-me para o sentido contrário ao da última vez. Fui subindo vagarosamente. De vez em quando parava e levantava o olhar por entre a abertura dos ramos dos já centenários plátanos que bordejavam o caminho. Ali perto ouvia o barulho provocado pelos movimentos de queda da água nas cascatas do rio. De resto, era o silêncio. Aquele silêncio que chega a meter medo. O menor ruído, provocado pelo calcar de um graveto seco no chão, dava motivo para sobressaltos. Era provável que estivesse atento em demasia. Numa clareira maior que as outras, onde havia árvores sem folhas, talvez atacadas por uma doença, pus-me a contemplar as estrelas brilhantes, através de uma abertura no firmamento, num pequeno espaço de céu azul, como nunca tinha visto, ou pelos menos conscientemente. Deduzi avistar a Ursa Maior. Segundo o que aprendera, já havia muito tempo. Ela ali continuava à espera dos olhares e comentários dos interessados. As outras não conseguira identificá-las. Os cumes das montanhas obstruíam a visão. Senti-me um nada, comparado com toda aquela grandeza. Na cidade, na vida do corre-corre, convencemo-nos que somos importantes e, por vezes, altaneiros, superiores, imprescindíveis, incomensuráveis. Ali, sozinho, no meio da natureza silenciosa, não era absolutamente nada. Nada de nada. Um pequeno ruído à minha volta e logo estremecia.
Depois daqueles pensamentos e receios, dei mais uns passos na subida. Voltei a ouvir o piar do mocho.
– De certeza que não é o mesmo! – disse para mim, como se estivesse a conversar com suposta companhia.
Pareceu-me que o medo se queria instalar novamente, como na noite anterior. Reagi: vou mais para cima. Afinal de que posso ter medo?
Mais uns passos em direcção à montanha e um novo som ecoou de lá. Parei. Não é o mocho. Deve ser a coruja. Não me devo ter enganado – continuava a falar em voz alta.
Percorri mais uns metros. Estava a perder o medo. Sempre gostei de pássaros. Lembrei-me de, quando criança, ter colocado num campo agrícola armadilhas de arame aos pardais. Na segunda vez que apanhei um, ainda vivo e, verificando as lamentações de uns tantos a esvoaçarem em socorro do chilrear de aflição, sem que nada pudessem fazer para o libertarem, soltei-o, enquanto um enorme sentimento emocional de culpa me arrasou. Depois, retiraram-se todos da zona enquanto fiquei só de lágrimas nos olhos. Após estas lembranças no meio da escuridão e do silêncio, tinha os olhos molhados e o medo tinha-se dissipado.
Fiquei ali parado sem contar o tempo. De repente, ecoou um uivo aterrador pelas montanhas.
– Isto, não é um pássaro! – disse para mim mesmo, um pouco atrapalhado.
Fora uma surpresa. No meio do silêncio uma coisa aterradora surgira. Tinha estremecido e ficado pregado ao chão. Quando dei por mim, estava a correr em direcção ao hotel. Não vi por onde pus os pés. Só me lembro que cheguei num ápice. Entrei. Estava pálido e cansado. Notava-se na cara e na respiração ofegante. O recepcionista, meio adormecido por detrás do balcão, dirigiu-me a palavra ao ver-me entrar tão repentinamente a contrastar com as outras vezes:
– Viu o lobo, Senhor?
– Ah! Não, não vi. Mas espere... aquilo era o uivar do lobo? – perguntei-lhe meio confuso ainda.
– Está enganado. Aqui já não há lobos. Deve ter ouvido um cão do guarda-florestal. Ali no meio da serra. Quando o tempo está para mudar, ele uiva.
– Será? – inquiri-me, silenciosamente.
Envergonhado pela situação, recolhi ao quarto.
Fora uma noite oposta à anterior. Sono não havia. O pensamento era constante: seria o lobo ou o cão? Foi uma longa vigília. Volta sobre o lado esquerdo. Volta sobre o lado direito. De vez em quando acendia a luz e verificava as horas. Os ponteiros deslocavam-se vagarosamente. Não estavam preocupados com a minha ansiedade.
***
De manhã chovia e ventava. A natureza tinha avisado antecipadamente, concluíra.
Estava na hora de regressar ao bulício da cidade. Não estava com disposição para continuar ali. Prometera que sozinho, no meio da natureza, nunca mais. Era bela de mais para as minhas capacidades de entendimento. Ou, estive afastado dela muito tempo?
Quando as malas se encontravam no hall da entrada para que o paquete as transportasse até ao local de embarque, na camioneta de passageiros, que uma vez por dia, trazia uns e levava de volta outros, abeirou-se o visitante, o pintor com quem tinha travado conhecimento, através das varandas dos dois quartos que ocupávamos lado a lado, interrogando-me:
– Já se vai embora?
– Sim. Está a chover e isto já não tem que ver. – afirmei em tom pouco convencido.
Ao pressentir hesitação nas palavras, o pintor atalhou novamente:
– Visitou todos os lugares destas montanhas? Ou foi aonde indicam os prospectos e roteiros turísticos?
– Fui só onde estava indicado pelos serviços de turismo, concluí para elucidação.
– Ó homem! Isso foi um desperdício de tempo e de paciência. Para se poder conviver com a natureza, temos de nos embrenhar nela. Os prospectos só nos mandam a locais onde toda a gente consegue chegar, mesmo que lhe falte uma perna. Se realmente quiser estar retirado do mundo idiota em que fomos lançados e em que nós nos lançámos por acréscimo, por iniciativa própria, nunca siga os roteiros. Sirva-se apenas deles para chegar próximo da natureza. Depois procure-a que ela estará lá à sua espera. Por exemplo: hoje está um bom dia para nos embrenharmos na serra.
– Com esta chuva? Um bom dia para ir para o meio da montanha? Não posso crer! – respondi por cortesia.
– Essa afirmação é do homem que sempre viveu na cidade. Ou a maior parte da vida. Ficou atrofiado em relação ao mundo de que faz parte. Nota-se.
– Não fui sempre da cidade. Nos primeiros anos de vida, vivi na aldeia. – respondi-lhe muito solícito, não querendo passar por desconhecedor total da natureza.
– É quase a mesma coisa. Mas diga-me, vai-se mesmo embora? Já não tem mais dias de férias?
– Sim tenho. Ia-me embora por causa de ter começado a chover.
– Não faça uma coisa dessas, homem! Se veio para cá com a intenção de estar no silêncio, fique mais uns dias. Acompanhá-lo-ei por esses atalhos da montanha e depois me dirá o resultado. Se quiser, a seguir ao almoço, faremos a primeira caminhada juntos. Se não gostar, amanhã regressará ao seu meio.
– Não quero incomodar.
– Não incomoda nada. Faço muito gosto no que lhe estou a propor.
– Se é essa a sua vontade, às 14,30 horas estarei pronto. O que preciso levar?
– Apenas aquilo que usava quando andava por aí.
– Mas assim vou molhar-me todo! – respondi muito rapidamente ao pintor.
– Não se preocupe. O que faz falta, tenho para os dois.
Após ter aceite a proposta do meu vizinho em férias, fui na direcção do recepcionista que nos tinha estado a ouvir e, quando ia para falar, o empregado cortou-me a intenção com uma pergunta:
– Quer reocupar o mesmo quarto?
– Sim! Quero.
Às 14H45, equipado conforme fora meu hábito, já me encontrava no hall da recepção. O pintor ainda não tinha descido. Examinei o tempo no exterior através da vidraça da porta principal, um pouco suja de pó da rua, enquanto pensava: não devo estar no meu perfeito juízo. Pronto para regressar a casa, um pouco desanimado pela chegada da chuva, e já com bilhete pago. Só porque um desconhecido me convence, aqui estou pronto para ir para a montanha com esta chuva miúda que molha mais que a de grossas pingas. Isto só de doidos onde estou incluído, evidentemente. Vou-me constipar. Apanharei uma gripe das gigantes. Irei ficar doente! – eram estas as minhas deduções em resultado da atitude que tinha tomado – Já nem sabia se estava ou não arrependido da decisão. O pintor não ficará pior do que eu? Com mais de setenta anos, creio. Terei menos vinte e tal anos do que ele e estou cheio de medo.
– Está pronto? – ouvi atrás de mim.
Dei meia volta sobre o calcanhar esquerdo e deparei à minha frente com o vizinho desinquietador.
– Ponha este chapéu e esta capa. Protege-lo-á da água da chuva, em parte.
Seguidamente, partimos.
Caminhámos os primeiros cem metros sem proferir palavra. A essa distância, já estávamos embrenhados na vegetação. Começávamos a adaptação ao ambiente molhado.
– Agora, pare! – ordenou o pintor – Volte-se para aquele lado! – ordenara mais uma vez.
– Para o arco-íris?
– Sim, para o arco-íris ou arco-da-velha, e não só. Para os milhões de gotículas de água em precipitação em direcção ao solo. Para aqueles raios de sol a reflectirem nelas e a refracção da luz em cada ponto de água em movimento.
– Um espectáculo celestial – respondera-lhe sem pensar.
– Disse muito bem. Um espectáculo que não é criação do ser humano. É do céu. Com certeza nunca se deu ao trabalho de analisar estes fenómenos ao pormenor e no local certo?
– Tem razão. Já vi muitos arcos-íris na minha vida, mas nada que se compare a isto.
– Os fenómenos deste género variam pouco na sua forma. Não nos damos ao cuidado de atender ao que nos transmitem. Essa é a verdade.
Ficámos parados uns bons minutos a contemplar as variações que se desenrolavam sistematicamente, em frente dos nossos olhos, em silêncio.
– O arco-íris está a desaparecer! – comentei um pouco entristecido. – Foi deslumbrante! – acrescentei – Nunca pensei que pudesse ser assim. Acredite...
– Acredito. Por mais que observe, cada vez mais os procuro. A beleza e a paz de espírito que nos introduzem é desmedida.
A maior parte das gotículas da água, estatelavam-se nas folhas das árvores, de múltiplas espécies, onde engrossavam, juntando-se umas às outras. Quando o seu volume e peso eram elevados, deslizavam e iam cair sobre as folhas acumuladas no chão. Ouvindo-se no momento do impacto o ruído característico.
Parando por debaixo de uma árvore centenária, um carvalho frondoso, ficámos uns minutos em silêncio a desfrutar de mais uma das maravilhas gratuitas da natureza.
– Já tenho os pés molhados! – afirmei em tom de desabafo para o pintor.
– Isso é bom. Mas vamos continuar?
– Sim, vamos. O senhor, afinal é que conhece bem a montanha. Andei por aqui uns dias e nada aprendi. Se não fosse o senhor, nem teria conseguido ver a beleza na totalidade daquele pôr-do-sol.
– Temos que aprender tudo como se fôssemos crianças. Aumentando o nosso poder de análise, aumentaremos a nossa sensibilidade e percepção daquilo que a natureza tem de melhor.
– Estou a compreender. Vamos?
Continuámos a subir, por trilhos íngremes, por entre fetos que nos molhavam a cara com a água que tinham depositada nas suas folhas gigantes e, algumas espetadelas nas pernas de espinhos de tojos, sempre prontos a defender o seu território.
Enquanto se subia, por princípio não se conversava para não nos cansarmos facilmente.
Ao fim de meia hora de penosa marcha, já encharcado dos pés aos joelhos, numa reduzida clareira, parámos. O pintor, apontando para entre duas rochas, disse:
– Ali, deve ter uma toca de lobo!
– O quê? Lobo? Ali? – eram só perguntas, enquanto as pernas começavam a tremer.
Passados uns segundos, a minha mente petrificou. Instantaneamente o pensamento se avivou com o anterior acontecimento nocturno. Um milhão de motivos desfilaram desordenadamente pelo meu espírito. Já não atinava com nada. Absolutamente nada. Queria sair dali imediatamente. Estava atónito. Parecia mais um rato branco de ensaio a correr dentro de uma roda. Mas não me mexia um milímetro sequer. O pensamento era o único responsável por tudo isto. Em resumo: o medo fora suficiente para me atormentar. Via-me a ser atacado por todos os lados por muitos animais ferozes. Não vislumbrava possibilidade alguma de defesa. Queria fugir, mas não me decidia. Estava colado ao chão. Já não sentia a humidade nos pés nem nos joelhos. O calor era tanto no meu corpo, que parecia ser uma tocha a arder. Eu era a tocha e não me movia na tentativa de apagar a chama. Tinha deixado de ter força de raciocínio.
Enquanto sofria terrivelmente naquele espaço de tempo, o meu interlocutor parecia estar a desfrutar das delícias do paraíso.
Vendo que tinha ficado mudo e quedo tanto tempo, depois de ter falado na possibilidade da existência de lobos ali perto, atalhou uma pergunta, acompanhada de um largo sorriso:
– Vamos ver se os encontramos?
A custo, as palavras começaram-me a sair.
– Não será perigoso? Não nos vamos "meter na boca do lobo?” Sempre ouvi dizer essa frase. Não iremos ser comidos?
– Ó homem! Tanto medo de um animal tão simpático e dócil. Vê-se que não conhece a natureza.
– Se assim é, vamos! – afirmei para me mostrar forte e decidido, mas pensava se não era melhor começar a correr, pelos trilhos que tínhamos percorrido, em direcção ao hotel.
Avançámos. O pintor na frente e eu a segui-lo uns metros atrás. Jogava à cautela. Se aparecesse o lobo, teria hipótese de fugir. Os batimentos cardíacos eram fortes. Sentia isso no peito. A respiração nasal fazia-se ouvir. A adrenalina aumentava assustadoramente. Será que está algum bicho por ali? – interrogava-me silenciosamente. De momento a momento olhava para trás. Sentia dentes caninos a enterrarem-se pela minha carne dentro. Sentia-os penetrarem nos ossos com um estardalhaço ensurdecedor. O meu cérebro tinha activado esse programa monstruoso. Em novo tinha visto alguns filmes sobre animais selvagens em luta pela sobrevivência. Agora, naquele local transformara-me na vítima. Possivelmente, o único casal de lobos daquela zona estaria a gozar com a minha emoção. O meu vizinho de hotel deve estar louco e eu sigo-lhe as pisadas: somos dois loucos. Ou melhor, eu é que sou o louco. Pronto para partir para casa e meto-me em semelhante alhada. Se sair daqui inteiro, devo ser internado no manicómio. Possivelmente, haverá lá internados com mais juízo do que eu.
Quando chegou a uma entrada mais apertada entre as rochas, o pintor virou-se para mim e exclamou em tom alegre:
– Não lhe disse? É toca de lobo. Estão ausentes. Devem ter crias. Foram ensiná-las a caçar para comer.
– Assim que ouvi as primeiras frases, o coração começou a bater nos pés. Saiu do peito e caiu. Foi uma sensação de desespero como jamais tivera. Aliás, nunca tivera nada que se lhe assemelhasse. Nem em combate na guerra do ultramar.
– Não é perigoso ficarmos aqui mais tempo? – inquiri preocupado e com medo.
– Não! Vamos ficar cerca de meia hora. Pode ser que, entretanto, cheguem. Já que aqui estamos, esperamos para os observar. Gosto imenso de os ver de perto.
– Mas sempre ouvi falar do ataque dos lobos sobre as pessoas. Não devemos ficar.
– Descanse. Os animais não são como as pessoas. Só atacam para sobreviver, enquanto nós, os humanos, atacamos por qualquer coisa. Para comer, para beber, para termos mais do que o nosso semelhante, por prazer mórbido de ver sofrer, tantos os animais como os nossos irmãos. Não tem descrição possível o comportamento do ser humano, já que se diz ser inteligente, o que duvido. Para os ajudar a viver e não nos atacarem por estarem com fome, tenho aqui uma surpresa para eles, apareçam ou não.
Ditas aquelas palavras, abriu uma saca de pano que transportava desde que saiu do hotel retirando do seu interior um embrulho. Desembrulhou-o lentamente. Eram bocados de carne crua. Tinha-a trazido do hotel. Depois pegou nos bocados na mão e pô-los em cinco locais diferentes, escolhidos, ao que entendi.
– Agora vamos para o cimo daquela rocha mais alta. É um pouco difícil, mas conseguiremos subir. Vamos esperar.
– É preciso apreciar muito a natureza para que se dê a todos estes trabalhos e ainda por cima com chuva.
– Se não amarmos a natureza tal e qual ela é, não passaremos de uns seres convencidos de que somos especiais, o que não é verdade. Somos tão animais como aqueles que esperamos ver aqui. Por isso, se estivéssemos atentos a toda a grandeza que nos rodeia, não sofreríamos como o Senhor, só porque um lobo ou dois nos podem aparecer. Todos viveríamos nos seus limites.
– Eu gosto da natureza, mas neste caso tenho algum medo. – respondi para continuar a conversa – Era daquilo que necessitava: conversa. Era para ajudar a esquecer aquela situação onde me meti voluntariamente.
– Quer ver como não gosta da natureza. Ou melhor, não gosta da maneira como a natureza nos criou. Veja em si mesmo. Todos os dias, creio, corta a barba. De vez em quando o cabelo e as unhas. Procede como a maioria dos homens que rejeitam a natureza. Já para não falar nas mulheres. Essas então, o que fazem... Falo mentira?
– Não! É verdade o que acaba de dizer. Corto a barba e o cabelo não por desrespeito à natureza, mas apreendi com o meu pai e meus avós. Eles sempre fizeram de igual maneira.
– Tem razão. Mesmo assim não me convenceu. Os meus ascendentes também assim procederam, mas não lhes segui as pisadas. Desde muito novo que deixei crescer a barba e o cabelo. Apenas lhes dou um toque para ficarem mais certos. Por exemplo: os leões com juba não são menos importantes que os que não a têm. A natureza criou-os assim e é dessa maneira que vivem.
– Mas não está a fazer-se tarde para a hora do jantar? – interrompi para satisfazer a minha ansiedade. – Apenas tinha obstinação em sair daquele local. Agora, além dos lobos, também via leões a espreitarem-nos por entre aquelas árvores. Era a mente a ficar mais confusa ou entupida.
Mal tinha acabado de pronunciar a última palavra, o pintor, levando o dedo indicador da mão direita junto da boca, fez-me sinal de silêncio. Um ruído invulgar tinha sido ouvido por ele e eu pouco me apercebera.
– Não fale! Vamos ter visitas. – segredou-me muito baixinho.
Fiquei em pulgas. Não sabia se havia de ficar contente por ir fazer nova observação de elementos que compõem a natureza ou se deveria desatar numa correria louca pela serra abaixo. O medo de permanecer ali à espera já estava novamente a invadir-me a mente. Só pensava: se ficar aqui, posso ser comido pelo lobo. Se desato a correr pelo monte abaixo, caio no meio do mato e fico aleijado e depois pode aparecer o dito animal e acabar o resto do serviço. O à-vontade do pintor para mim não é suficiente para me defender destes perigos. Mas porque dei ouvidos a um homem já velho e maluco? O que me estava reservado, meu Deus?
Enquanto a mente fervilhava com todos os aspectos em rodopio, "o homem da natureza", como lhe passei a chamar, estava mais atento ao que ia acontecer, que sacristão na hora de tocar a sineta no meio da missa.
Uns segundos mais e a minha roupa enterrou-se pela rocha dentro, levando atrás a minha carne. Fora como se de repente o granito se transformasse em manteiga e eu num bloco de ferro em brasa. Senti-me afundar dentro dela a velocidade vertiginosa.
A escassos dez metros, aparecera o primeiro animal. Grande porte. Vagaroso. Desconfiado. Focinho no ar como que procurasse alguma coisa em cima das rochas.
Fiquei imóvel. Tão sem movimento que estaria mais parado que a própria rocha onde estava sentado. O meu vizinho estava radiante, segundo observei de repente no brilho dos seus olhos e pelo mexer na barba. Talvez estivesse a sorrir para o bicho. Não sei. Mas, também, nunca quis saber.
Ainda não me tinha refeito do susto e já outro acontecia. Do mesmo lado aparecera novo animal. O homem rodou mais um pouco para o meu lado e, novamente em voz baixa, esclareceu: é a fêmea. É um casal. Ainda não têm filhos, mas já estão à espera.
– Ouvi, mas não liguei. O medo era mais poderoso que o interesse por existirem ou não descendentes. O que queria, isso sim, era sair dali. Já nem as pernas sentia depois das duas aparições.
Ambos fomos observados por ambos.
Depois de terem analisado a nossa presença, foram em direcção da carne exposta, farejaram-na, bocado após bocado, mas não lhe tocaram. Era sinal de que tinham almoçado o suficiente. Deram umas voltas junto de um velho pinheiro manso e dirigiram-se a caminho da toca.
Assim que desapareceram, era sinal de sair dali. O pintor olhou-me com um grande sorriso de felicidade e perguntou:
– Está satisfeito com o que viu?
– Sim estou, mas o melhor é irmos já embora, antes que voltem, ou venham outros.
– Não há outros ainda! – disse para me sossegar o espírito.
– Não? – indaguei, incrédulo.
– É o único casal destas redondezas. Foram libertados aqui perto há mais ou menos dois meses pelos serviços de protecção da natureza para repovoamento. – esclareceu-me, prazenteiramente.
– Mas o recepcionista do hotel tinha dito não haver lobos.
– Ele sabia que um casal tinha sido libertado, mas não acreditou.
– Então, quando há dias ouvi uivar, não era o cão do guarda-florestal, mas sim os lobos?
– Poderia ser uma coisa ou outra. O cão, é descendente de lobo, por isso, quando o tempo está para mudar também dá sinal. A natureza é assim mesmo. Tudo está interligado. Os animais são mais inteligentes do que nós, os humanos. Cumprem a preceito aquilo que a natureza quer.
– Já podemos ir embora? – cortei o continuar da conversa. Não via interesse algum do meu companheiro sair do local.
– Sim. Se é esse o seu interesse, vamos! Também estamos um pouco molhados.
Iniciamos a marcha de regresso. Foi descer a toda a pressa pelos trilhos que nos tinham conduzido ao local. Para baixo não havia dificuldades, todos os santos davam a sua ajuda. Uma hora e meia depois, entrávamos nas instalações hoteleiras. Estávamos completamente molhados. A capa protectora tinha ressoado por dentro pelo calor do nosso corpo e a roupa ficou húmida, para não dizer encharcada. Despedimo-nos e cada um de nós foi para o seu quarto. Estávamos a necessitar de um banho quente. Presumira que ia apanhar uma gripe e já tinha sintomas de que ela se estava a desenvolver.
Às vinte horas desci para jantar. O meu vizinho apareceu passados cinco minutos. Abeirou-se e perguntou se podia sentar-se à mesma mesa.
– Com certeza. É um prazer. – respondi-lhe sem me compreender se o fazia por delicadeza ou por ter sido dominado pela personalidade do homem. A longa barba e cabelo, quase tudo branco, impunham certo respeito. Talvez por esse motivo me deixei empreender naquela aventura pela serra.
Iniciámos a refeição e fomos conversando sobre diversos temas. Ele era uma enciclopédia ambulante. No meio de uma frase sobre a suavidade de uma peça musical clássica, transmitida por uma emissora portuguesa, no rádio da sala de jantar, olhou na minha direcção com ar altivo, perguntando?
– Amanhã, vamos concluir a subida da serra até ao cume? Saímos de manhã, levamos umas sandes para o almoço e ao jantar cá estaremos. Concorda?
Fiquei aturdido com a pergunta. Não sabia o que havia de dizer. A experiência vivida na tarde do dia tinha sido suficientemente violenta para a minha capacidade de enfrentar o perigo. Como não lhe respondi imediatamente, inquiriu:
– Então, está desanimado? Ou com medo? Descanse que desta vez não vamos aos lobos. Vamos procurar observar a águia-real. Há poucas, mas com sorte avistá-las-emos. Vai estar um dia limpo, segundo as previsões meteorológicas.
– Sim, eu sei. Vamos. – respondi por favor. Sem convicção alguma.
Quando regressasse a casa e contasse aos meus conhecidos e amigos quais tinham sido as peripécias nas férias deste verão, o mais certo seria mandarem-me internar num hospital para alienados. Tinham razão para o fazer. O senso comum aconselha a que não nos metamos em aventuras fora de época. Sim, fora de época, porque a vida já vai adiantada para estas coisas. Por outro lado, se comparado com o pintor, até poderia ser meu pai, o que não o impede de andar nestas aventuras e todo satisfeito pelos ensinamentos que me deu a conhecer.
Às três horas da madrugada, acordei. Estava a ficar preocupado com qualquer coisa. Não sabia o que era, mas não estava bem. Levantei-me, fui beber um copo de água para acalmar a minha ânsia, dei uma volta pelo quarto e ao fim de cinco minutos, voltei-me a deitar. Tinha medo, mas não sabia de quê. Acendi a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira, todo em latão amarelo e quebra-luz verde e pus-me a observar os trabalhados das molduras do tecto. Eram de estilo árabe.
Cerca das quatro horas, quando estava novamente a voltar ao sono, sobressaltei-me. Pareceu-me ter ouvido uns barulhos estranhos àquela hora da madrugada. Não era costume ninguém entrar ou sair tão tarde. Retomei a necessidade preocupante de adormecer. De manhã cedo teríamos de empreender uma viagem pela serra, de onde só regressaríamos ao fim do dia. Íamos estar na natureza, conforme tinha prometido o meu vizinho, o pintor, como sempre ficou conhecido. Nunca soube o nome dele. Não lho perguntei, nem ele mo disse. Por estranho que pareça, jamais ouvi chamar pelo seu nome no hotel. Era fácil saber. Bastaria perguntar ao recepcionista. Todos se referiam a ele por: "o pintor". Nunca quis ser indiscreto. Para mim também era o pintor ou o homem amante da natureza.
Levantei-me cedo. Eram seis horas e meia. Queria chegar cedo ao encontro para fazermos os preparativos para a aventura. Até parecia que já estava a adorar a natureza, apesar de ter apanhado uma molha dos diabos e ainda, do susto por causa dos lobos. A continuar assim, ainda acabaria por ficar pior que o desencaminhador do hóspede aventureiro.
Chegando ao hall da recepção, dei de frente com o recepcionista. Tinha cara de quem dormira pouco. A sua profissão não era de gabar. Com sorte ainda dormia cinco ou seis horas em cada vinte e quatro. Se a algum hóspede arranjava uma dor de barriga, quem sofria mais era ele certamente. Os donos do hotel iam dormir para a sua vivenda, portanto, só em caso extremo é que os chamavam.
– Bom dia! – Disse para ele ainda não tendo acabado de descer o último lance da escada – Levantámo-nos cedo hoje?
– É verdade! Estou a pé desde as três da madrugada.
Enquanto me informava do seu despertar, aproximou-se um dos proprietários do hotel. Achei estranho vê-lo àquela hora. Um arrepio muito frio e repentino percorreu-me todo o corpo.
– Que aconteceu? – perguntei um pouco atrapalhado.
– Ah! Não sabe? – indagou o proprietário – O pintor, o seu amigo... – interrompi.
– Não vai para a montanha hoje? – perguntei rapidamente sem o deixar concluir aquilo que tinha em mente – Ficou gripado por causa da molha de ontem?
– Não! Pelas três horas e meia desta madrugada, morreu.
Não quis acreditar! Era de mais para mim. Pensei que estaria a sonhar e não acordado. Não poderia ser verdade o que acabava de ouvir. Estava aturdido de tamanha confusão repentina.
O homem morrera de ataque cardíaco. Fora transportado para o hospital, mas não lhe valeram. Foi tudo o que fiquei a saber. Não estava preparado para semelhante surpresa. Quem estaria?
Realmente, o meu comportamento durante a noite tinha sido de mau agouro, mas daí até o meu vizinho ter morrido, era caso impensável.
Acabou-se o meu gosto pela natureza. Acabaram-se as minhas férias naquele hotel. Acabou-se o interesse por observar o pôr-do-sol. Apenas ficou na mente a excepcional imagem do primeiro entardecer em que o pintor não foi capaz de o transportar para a tela. Quis guardar só para si a beleza efémera do acontecimento e foi escondê-la, rapidamente, para que outros não se apoderassem daquilo que tanto gostou. Ficou apenas um quadro inacabado. Nunca soube se tinha algumas obras que pudessem ser vistas, mas também nunca tive coragem para pesquisar. Ficou a recordação daqueles bons e maus momentos sobre o pintor que amava a natureza.
O seu corpo desceu à natureza de que fazia parte e tanto amava, enquanto o seu espírito, planará ao lado da águia-real que prometera mostrar-me, perscrutando a beleza do universo natural que ainda resta neste planeta.






